segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Interlúdio - Étimos (A Criação)

No princípio, havia o Nada Imutável, que era o Caos e a Calmaria. Apenas diferentes associações de um vazio preponderante. Realidades em branda coexistência.
Entre ambos havia o Éter, a Centelha Dióica. Sua mera existência impedia a junção das energias antagônicas, separando-as por toda a eternidade.
Foi em um dado momento - pois que os anos, então, não eram contados em pequenos intervalos de calendário, como hoje - que houve um turbilhão. E nada mais impediu a Tormenta.
‘Foi uma diarréia sem vassoura e sem baldinho.’
E quando o Éter encontrou os Mundos em confluência, eis que surge a primeira matéria, a Quintessência do Universo.

Então veio: a aragem, a cornucópia e, novamente, a viração. Criava-se um novo Mundo.
No começo era apenas um enorme concentrado de pedra e barro, mas então, como um tumor, o aglomerado começou a expandir-se cada vez mais. E o formato perfeitamente esférico que antes possuía, agora ganhava saliências, protuberâncias e estrias, terminando, por fim, em uma figura tosca e disforme – muito similar a um pedregulho.
E foi sem possuir forma esférica ou geóide, ou melhor: “E foi sem possuir forma alguma, que Só-Tem-Pedreira acabava de surgir". Ainda que com mais características geográficas do que realmente era preciso, é verdade, mas ainda assim, novo em folha.

Entretanto, a vida ainda não havia surgido nesse lugar, pois o Plano anterior não mais existia. A Tormenta utilizou o furor da Centelha para dar forma às energias.
As águas profundas ainda sentiam as correntes tórridas da criação. E um redemoinho, nascido nos abismos escuros do oceano ascendeu à superfície. Do caos, distinguiu-se a forma da primeira divindade.
Hugo Leiro, era seu nome. E Hugo, por eras, conheceu a solidão, vagando por todos os confins da terra.
E quando não mais podia suportar o vazio, encontrou em suas caminhadas uma figura feminina, ferrada em sono junto ao barro. Reconheceu-a pela intensa vibração que sempre sentira antes de chegar a Tormenta. Era Fran Gueira.
Estiveram separados pelo Éter durante eras, amando um ao outro, fadados a nunca poderem se encontrar de verdade. Agora, enfim, seriam amantes.
Porém uma terceira figura surgia ao longe, vindo encontrar-se com os dois jovens.
Compreenderam de pronto. Criado do Éter dos Mundos: Retar da Tário. Assim o fora, posto que continha a Centelha da origem de tudo.
O amor que urgia entre Hugo Leiro e Fran Gueira criou a vida de todos os seres de Só-Tem-Pedreira.
O trabalho foi tão minucioso, que toda a existência carregava a forma mais pura e perfeita de equilíbrio que os jovens amantes conseguiram encontrar.
Durante muito semearam a vida por Só-Tem-Pedreira, enquanto Retar apenas olhava invejoso e rancoroso. Fora esquecido por eles, por aquele amor cego. Não lembravam que só estavam juntos por causa dele, ele é quem deveria ser o verdadeiro criador.
Ver os dois amantes espalhando o fruto de sua paixão pelo mundo que ele próprio havia criado, só fomentou o ódio no coração Retar da Tário. E por tempo incontável arquitetou planos maléficos, esperando o Trabalho de Hugo Leiro e Fran Gueira estar concluído. Em sua espera, Tário se tornou cruel, vil e mesquinho.
E quando a vida preencheu toda a terra, aproximou-se sorrateiramente do casal enquanto estes dormiam, e arrancou-lhes o coração. Nem dó ou piedade se acometeram de Retar enquanto extirpava, chacinava e retaliava os corpos de seus odiados usurpadores.
Quando acabou, dirigiu-se ao vulcão mais alto que existia para jogar as partes do que outrora foram seus companheiros e erradicar, de uma vez por todas, a existência daqueles únicos seres que podiam ter ameaçado seu reinado.
Ao aproximar-se da borda da colina, revelou-se o rio de lava borbulhante que corria no precipíco abaixo. E por um mero descuido, da Tário esqueceu-se de prender as fivelas de suas botas. Erro grosseiro. Ao dar o passo final em direção ao desfiladeiro, seu pé, em um extremo mau-jeito, acabou por encontrar uma pedra. E o tropicão seguinte projetou seu corpo à frente.
A queda foi deselegante. Partes de Hugo e Fran se espalharam, confundidos com pedaços de terreno rochoso e um resto de sei-lá-o-quê que da Tário almoçara. O grito de lamúria soltado pelo malfeitor foi ouvido por léguas de distância.
Mas não acabou por aí. Alguma mágica antiga foi acionada no momento em que os restos de Hugo e Fran caíram na lava com o corpo de seu algoz. E a rocha escaldante absorveu a malignitude do enfadonho Retar da Tário, levando-a ao coração da Terra.
E desde então, Só-Tem-Pedreira se tornou um lugar cruel.

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